Explore a narrativa bíblica de Gênesis 2, que detalha a criação do homem e da mulher, o Éden e as raízes do mal segundo a tradição israelita.
1 Assim foram concluídos o céu, a terra e todo o seu exército.
2 Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito, descansou do seu trabalho.
3 Ele abençoou o sétimo dia e o consagrou, porque nesse dia descansou de toda a obra da criação.
4 Tal é a história da criação do céu e da terra.
O paraíso #
No tempo em que o Senhor Deus fez a terra e o céu,ᵃ 5 não existia ainda sobre a terra nenhum arbusto nos campos, e nenhuma erva havia ainda brotado nos campos, porque o Senhor Deus não tinha feito chover sobre a terra, nem havia homem que a cultivasse; 6 mas subia da terra um vapor que regava toda a sua superfície.
7 O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas o sopro da vida, e o homem se tornou um ser vivente.
8 Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, do lado do oriente, e colocou nele o homem que havia criado. 9 O Senhor Deus fez brotar da terra toda a sorte de árvores de aspecto agradável e de frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal.
10 Um rio saía do Éden para regar o jardim, e dividia-se em seguida em quatro braços. 11 O nome do primeiro é Fison, e é aquele que contorna toda a região de Hévila, onde se encontra o ouro. 12 (O ouro dessa região é puro; encontra-se ali também o bdélio e a pedra de ônix.)
13 O nome do segundo rio é Geon, e é aquele que contorna toda a região de Cuch. 14 O nome do terceiro rio é Tigre, que corre ao oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates.
15 O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden, para cultivar o solo e o guardar. 16 Deu-lhe este preceito: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; 17 mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente”.
18 O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar que lhe seja adequada”. 19 Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais dos campos, e todas as aves do céu, levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar; e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome.
20 O homem pôs nomes a todos os animais, a todas as aves do céu e a todos os animais do campo; mas não se achava para ele uma auxiliar que lhe fosse adequada.
21 Então, o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e, enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. 22 E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem.
23 “Eis agora aqui – disse o homem – o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem.”
24 Por isso, o homem deixa o seu pai e a sua mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só carne.
25 O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam.
Comentário de Gênesis 2 #
a) Gn 2,4b-25 O paraíso. Este novo relato, também chamado de “relato da criação”, possui algumas características que o tornam diferente do primeiro capítulo. Nele não há uma ordem tão rígida, nem uma sequência de obras criadas de acordo com os dias da semana. Também aqui Deus não dá ordens para que apareçam as coisas; ele mesmo vai fazendo com suas mãos, modelando com argila cada ser vivente, e o faz com engenhosidade para conseguir que sua principal criatura, o homem, sinta-se bem: faz com que durma e de sua costela forma uma criatura, que o homem reconhece como a única com capacidade de ser sua companheira entre todas as criaturas já existentes: a mulher.
Portanto, o estilo literário e a percepção ou imagem que se tem de Deus são completamente diferentes daquele do primeiro relato do Gênesis. Este é um relato muito antigo que os israelitas já conheciam vários séculos antes. Seu material original parece provir da cultura acadiana; os israelitas adaptaram-no a seu pensamento e o empregaram para explicar a origem do homem e da mulher; mais ainda, para procurar estabelecer as próprias raízes do mal no mundo.
Efetivamente, desde suas origens, Israel sofreu e experimentou a violência. Várias vezes viu-se ameaçado e submetido por outros povos mais fortes que ele, mas também submeteu e exerceu violência contra outros. A crítica situação do século VI a.C. obriga esse povo a repensar o sentido desse encadeamento de violências e, servindo-se deste relato já conhecido pelos israelitas, os sábios vão começar a provar sua tese de que a origem e a fonte do mal não estão em Deus, mas sim no próprio coração humano.
Segundo a narrativa de que nos ocupamos, o ser humano, homem e mulher, provém da mesma “adamah” – pó da terra – da mesma matéria da qual também foram feitos os animais (v.19). O ser humano e os animais se assemelham em seus comportamentos, porque desde a origem existe algo que os identifica: a “adamah”. Por isso, os que nascem são chamados de “Adão”, porque são formados com “adamah”, provêm dela. Assim, fica claro para os israelitas – que sofriam violência, opressão e brutalidade e infligiam-nas a outros – que os instintos e comportamentos selvagens têm uma mesma matéria original, tanto no ser humano quanto no animal: a terra, o pó.
Na criação do ser humano e dos animais podem se destacar, ao menos, três elementos que lhes são comuns: 1) o ser humano é formado com “argila do solo”, elemento do qual também são feitos os animais (vv.7,19); 2) Deus dá ao ser humano “alento de vida”, mas também o recebem os animais (cf. Gn 7,15,22; Sl 103,29s); 3) o ser humano é chamado de “ser vivo”; os animais recebem idêntica denominação (Gn 1,21; 2,19; 9,10). Isso significa que o ser humano é igual ao animal? A Bíblia responde negativamente e explica que ao ser humano, Deus deu algo que os animais não possuem: a imagem e semelhança com ele (Gn 1,26), imagem que começa a se perfilar desde o momento em que Deus sopra seu próprio alento nas narinas do ser humano que acabou de formar (v.7).
Assim, pois, não é ser humano só pelo fato de ter um corpo; o específico do ser acontece quando o Espírito de Deus nele habita, o torna apto a ser alguém humanizado. Dito de outra maneira: o humano acontece no homem e na mulher quando sua materialidade – “adamacidade” – é ocupada pelo Espírito de Deus.
Superada a literalidade com que nos ensinaram a ver esses textos, é possível extrair deles – também na atualidade – imensas riquezas para nossa fé e crescimento pessoal. Basta lançar um olhar às atuais relações sociais, à ordem internacional, para percebermos a tremenda atualidade que esse relato encerra. Também nossos fracassos, a violência e a injustiça que se mantêm em nosso mundo têm a ver com essa tendência natural para destruir e eliminar quem atravessa nosso caminho.
O texto nos convida, hoje, a tomar consciência de nossa natural “adamacidade”, mas também a nos conscientizar de que dentro de cada um há a presença do Espírito que só espera a oportunidade que lhe demos para humanizar-nos e assim poder sonhar com uma sociedade nova, graças a nosso esforço coletivo.
Esta é, pois, uma primeira resposta que a Escritura dá ao questionamento existencial sobre o mal, sobre a violência e a injustiça, pão de cada dia do povo de Israel e nosso, na atualidade. Finalmente, o trabalho que os pensadores e sábios de Israel realizaram é toda uma autocrítica que está apenas começando. Mas o ponto de partida já fica estabelecido neste segundo relato do Gênesis: a origem do mal está no próprio ser humano, no deixar-se dominar pela “adamacidade” que leva dentro de si. O relato seguinte é a ilustração concreta dessa tese.
Referências – Versículos relacionados à Gênesis 2 #
Gn 2,2. Texto citado em Hb 4,4.
Gn 2,7. Texto citado em 1Cor 15,45.
Gn 2,8. Um jardim, chamado também um paraíso. Éden significa estepe, mas evoca a ideia de delícias.
Gn 2,22. Texto citado em 1Cor 11,8s; 1Tm 2,13.
Gn 2,23. Mulher: em hebraico Ichá, derivado da palavra Ich, homem.
Gn 2,24. Texto citado em Mt 19,5; Mc 10,7s; Ef 5,31; 1Cor 6,16.
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